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Retrospectiva: The Witcher

The Witcher foi o primeiro jogo da produtora polaca CD Projekt Red, e embora tivesse muitos problemas, especialmente no campo técnico, conquistou milhares de jogadores (cerca de 1,7 milhões de cópias vendidas). Esta retrospectiva não tem como finalidade dissecar os pontos positivos e negativos, para isso têm as análises, será basicamente uma amostra de alguns aspectos que tornaram The Witcher e o seu mundo criado por Andrzej Sapkowski tão único e apelativo.

Fanatismo

Acho que é correcto afirmar que este é um dos pontos centrais de maior importância. Quase todas as personagens em The Witcher são movidas por fanatismo. Quer seja religioso, como a ordem da Flaming Rose, político como o rei Foltest, ou racial como os Scoia’tael. O extremismo e as consequentes rivalidades moldam o reino de Temeria, e Geralt (o jogador), é obrigado a fazer escolhas de acordo com estas motivações.

O mundo de The Witcher é fortemente discriminatório, os humanos dominam todos os aspectos da sociedade, obrigando os não-humanos (elfos, anões e outras raças menos relevantes) a refugiarem-se fora da civilização ou em guetos. O extremo fanatismo racial leva a lutas violentas e a actos de terrorismo contra humanos e massacres como resposta, é fácil criar paralelismos com situações reais como a que presenciámos em regimes de apartheid ou no médio oriente. Este movimento terrorista não-humano denomina-se como Scoia’tael (ou os esquilos), e a situação acaba por explodir no último acto do jogo.

Os antagonistas dos Scoia’tael são uma organização militar e religiosa, a ordem da Flaming Rose. A sua motivação não é apenas racial mas especialmente religiosa, eles vêem-se como os defensores da sociedade humana guiados pelo culto do fogo eterno. O seu líder, fundador e principal antagonista do jogo, Jacques de Aldersberg, é a personificação de tudo o que a organização representa, sendo mesmo o responsável pelo caos em que Vizima mergulha no ultimo acto.

Para além do culto do fogo eterno, Temeria e o resto dos reinos do norte são dominados por outras religiões. A mais importante e relevante é o culto da deusa Melitele, no entanto dezenas de outras são seguidas por grupos mais pequenos, tais como o culto da senhora do lago ou do Deus subaquático Dagon.

Finalmente encontramos o lado politico. O mundo criado por Sapkowski está envolto em complicadas teias políticas que lutam por influências e interesses, e o jogo não tem medo em mergulhar o jogador nesses complexos jogos políticos. Nilfgaard é a grande potência mundial, mas são os reinos independentes do norte que protagonizam The Witcher, especialmente Temeria, liderada pelo rei Foltest. É em Temeria que as diferentes motivações politicas se convergem, eo trono de Foltest é ambicionado por diferentes forças, incluindo a sua própria filha, Adda.

Sexualidade

O mundo de The Witcher é machista, sexista e misógino, e o jogo reflecte isso mesmo. As infames cartas sexuais que recompensam o jogador por cada conquista sexual, tornaram-se polémicas e foram acusadas de dar uma imagem infantil e machista ao jogo, degradando o papel das mulheres. Por um lado pode ser correcto apontar isso, mas muita gente não vê que o mundo onde Geralt habita é moldado precisamente por esses valores. As mulheres (ou pelo menos grande parte delas) são vistas como uma “classe” inferior que é tradicionalmente explorada.

Para além disso, o próprio Geralt propicia esta mesma situação. Andrzej Sapkowski criou Geralt como um herói clássico em que a lenda e realidade se misturam. Muitos dos traços da sua personalidade ganharam fama dentro do mundo de jogo através das baladas românticas exageradas do Dandelion, que conquistam os corações de muitas mulheres. Isso, juntamente com o facto das mutações do Geralt o terem tornado infértil, leva a que a sexualidade (embora no final acabem por ser as acções do jogador que contam) seja uma parte importante do seu comportamento. No entanto, apenas um acto sexual é “obrigatório”, como tal muita da sexualidade primária que é apontada ao jogo acaba por ser mais um reflexo das acções do jogador, e nem tanto uma característica inerente do jogo.

Finalmente, o papel do sexo neste universo é completamente distinto do que acontece na nossa sociedade. O seu papel não cresceu à volta de tabus religiosos como no nosso caso e acaba mesmo por ser uma “arma” válida nos jogos de poderes de Temeria. Aliás, muitos dos acontecimentos centrais em The Witcher, são consequência directa do papel da sexualidade. Adda é fruto dos desvios sexuais entre Foltest e a sua própria irmã, e também têm como consequência a sua transformação em striga.

Ambiguidade

Os videojogos, salvo raras excepções, são focados em extremos. A distinção entre o bem e o mal, o preto e o branco, a vitória e a derrota, é sempre o mais explicita possível de forma a focar o jogador em objectivos claros. Uma história que navegue no meio de extremos obriga o jogador a parar, pensar, reflectir sobre o que está a fazer e a acontecer. The Witcher faz isso mesmo, e apresenta quase sempre as duas faces da mesma moeda, onde nem tudo é mau, nem tudo é bom, e como tudo na vida, há diferentes formas de ver a mesma situação.

É por isso que este mundo é tão apelativo, obrigando o jogador a estudá-lo e a conhecer as diferentes motivações e aspectos das situações com que se cruza. Os Scoia’tael são desprezados pela sociedade racista, mas utilizam a violência para passar a sua mensagem. A ordem da Flaming Rose usa a religião para defender a sociedade dos monstros e respectivas ameaças, mas é fascista e vê todos os não-humanos como dispensáveis. O dever dum witcher é matar monstros, mas merecerão todos eles esse destino? Que direito tem Geralt de os matar? Foltest é um rei popular e carismático, mas ao mesmo tempo apresenta graves deficiências morais; Berengar traiu a ordem dos witchers, mas fê-lo porque despreza a sua natureza, que não teve oportunidade de escolher.

Numa industria e num género em que a visão extremada é o modelo base, o mundo realista de The Witcher é uma enorme lufada de ar fresco.

Escolhas e Consequências

Podemos dizer que a base dos sistemas de consequências dum típico RPG ocidental moderno (estou a olhar para ti Bioware), se baseia no imediatismo e na gratificação instantânea. Este ponto está também relacionado com a ambiguidade que referi anteriormente. Normalmente cada decisão está facilmente dividida entre dois pólos e as suas consequências são imediatas.

The Witcher não tem medo, aliás, orgulha-se em não apresentar imediatamente ao jogador as consequências das suas acções. Normalmente só nos é possível vislumbrá-las horas, ou até mesmo capítulos mais tarde. Isto obriga-nos a reflectir sobre os dilemas que se deparam no nosso caminho. Não é possível fazer um quick load e mudar as nossas escolhas, teremos de viver com elas todo o jogo, muitas vezes sem saber se foram ou não as mais correctas. Sim, porque nem sempre elas estão divididas entre os dois pólos clássicos, muitas delas são ambas negativas e obrigam o jogador a escolher o mal menor.

Na prática, o jogo está dividido entre três caminhos distintos e as nossas decisões navegam Geralt precisamente entre eles, o da Ordem, o dos Scoia’tael e o caminho neutro. Para além destes caminhos centrais, há uma série de diferentes ramificações mais ou menos importantes. Salvem a Abigail no 1º capitulo e ela recompensar-vos-à no 4º capitulo; matem o Berengar no 4º capitulo e ele não vos ajudará no seguinte, e por aí fora. Todas as escolhas têm uma consequência e cada uma delas não é imediata nem clara.

Geralt

Finalmente temos o nosso herói, ou anti-herói. Imaginem o homem sem nome dos filmes do Sergio Leone, ou o James Bond num universo de fantasia, e terão uma ideia de quem é Geralt. Muito do jogo perderia o mesmo impacto sem Geralt da Rivia, já que é através dele que todos os aspectos que falei anteriormente são transmitidos ao jogador. Geralt é um witcher, um mutante, caçador de monstros e um símbolo de tempos passados. O mundo moderno vê os witchers como aberrações em extinção, homens solitários e condenados a perder qualquer relevância na sociedade. Fruto da sua natureza, os witchers (e Geralt caso o jogador assim o entenda) são neutros, já que não se enquadram nem entre os humanos (fruto das suas mutações), nem entre os não-humanos.

Apesar de tudo, os witchers, especialmente o Geralt, são figuras quase lendárias entre a cultura dos reinos do norte, e as histórias dos seus feitos são cantadas (e exageradas) por todos. Geralt começa o jogo com (surpresa) amnésia, e cabe ao jogador ir montando o seu passado com as diversas pistas que lhe são dadas. Do que sabemos do seu passado, Geralt participou na sangrenta batalha de Brenna onde as forças do norte derrotaram o império de Nilfgaard, e foi mais tarde aparentemente assassinado durante uma rebelião contra não-humanos em Rivia.

Ao contrário do que é geralmente regra nos RPGs, Geralt não serve para ser moldado pelo jogador; ele tem uma história e personalidade muito vincadas por uma dezenas de livros e contos, cabendo ao jogador conduzi-lo através da história, moldando não a sua personalidade, mas sim o caminho que ele percorre.

Eu sei que apenas toquei na superfície do que faz The Witcher não só um grande jogo, mas especialmente um universo tão cativante, mas espero que ao menos tenha conseguido despertar a curiosidade de quem por uma ou outra razão nunca teve interesse nas aventuras de Geralt. Ainda por cima agora, com o lançamento triunfal da sua sequela, penso que será pertinente descobrir, ou caso já o tenham feito, redescobrir o mundo criado por Sapkowski e pela CD Projekt Red.

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