Análises

Rage

Durante a 1ª Guerra Mundial o mundo estava em mudança. No meio de inovações militares que mudariam o mundo, as tradicionais unidades de cavalaria como os Hussardos ainda faziam parte dos exércitos, mesmo que a sua utilidade fosse quase nula. Era um sinal dos tempos e um confronto entre a inevitabilidade do modernismo e as amarras nostálgicas da tradição. As unidades de Hussardos aperaltavam-se orgulhosamente com os seus uniformes ostentosos e de sabre em riste, no entanto os tempos tinham mudado, as suas famosas cargas já não tinham qualquer relevância num mundo dominado pelo metal.

“Que diabos… carreguei no link errado?” Não, perdoem-me por mais uma das minhas habituais divagações, sim esta é a análise ao mais recente jogo da id Software, Rage. É que Rage faz-me lembrar esses Hussardos presos numa encruzilhada histórica, um símbolo orgulhoso dum passado glorioso a tentar sobreviver num mundo moderno que entretanto mudou. Mas já lá vamos.

Às vezes nem nos apercebemos destas coisas, mas a id já não fazia um jogo há (preparem-se) sete, 7 (!) anos. Sim o último jogo foi nada mais, nada menos que o DOOM 3 em 2004, o que nesta industria é uma eternidade. Há poucos developers que se podem dar ao luxo de ter produções tão longas e dispendiosas. Depois de DOOM 3 e durante a longa produção de Rage, surgiram novas consolas, uma nova geração, a série Call of Duty mudou a face dos FPS (um género criado pela própria id é claro) e a id foi adquirida pela ZeniMax. Parecem mundos diferentes.

Um jogo com um processo de criação tão longo, responsável pelos pais do género mais popular da industria tem que, obrigatoriamente, criar expectativas colossais, de tal forma altas que apenas algo muito especial as poderia igualar. E infelizmente, Rage não é especial.

Direi mesmo que é banal, não que isso seja necessariamente mau. Embora esteja constantemente a ser comparado a Borderlands e Fallout 3, não acho que partilhem assim tantas semelhanças, especialmente com o jogo da Bethesda, são géneros e filosofias completamente distintas. Borderlands está mais próximo, no entanto Rage é um claro descendente dos FPS arcade tradicionais que a própria id ajudou a criar. Mas ele é alvo dessas comparações por causa do seu setting pós-apocalíptico e do seu pseudo-open world. Digo pseudo porque o mundo de jogo fora dos tradicionais níveis lineares e das cidades que funcionam como hub worlds, é completamente desinteressante, vazio e sem grande praticabilidade. Rage seria tão, mas tão melhor se abandonasse esse mundo aberto e fosse um clássico jogo linear com níveis sequencialmente interligados.

E digo isto porque o combate é o seu grande ponto forte, é aqui que se nota o ADN do pessoal da id. É intenso, arcade, violento, rápido e gratificante. É um herdeiro de DOOM e Quake e não de Call of Duty e nem imaginam como sabe bem dizer isto. Mas ao contrário de Duke Nukem Forever que também utiliza um combate com inspirações retro, a id soube moderniza-lo de forma a que não pareça que foi retirado directamente do passado em hibernação como o protagonista do jogo.

Se falar do protagonista terei de falar da história e como é habito na id é aí que os seus jogos se espalham ao comprido. De facto mais uma vez não conseguem criar um bom shooter com uma boa história, uma história que motive o jogador a querer seguir em frente, é realmente uma pena. Tudo na sua narrativa é genérico e cliché, rebeldes, regimes autoritários (com o inventivo nome de… autorithy…), vaults que protegiam pessoas pessoas do Apocalipse, mutantes, etc, etc, etc, o habitual. A forma como a narrativa progride é também uma desilusão já que é completamente à base de fetch quests, o protagonista mudo passa todo o jogo a servir de moço de recados sem qualquer palavra no assunto. A única motivação que tive em querer aceitar e completar missões era para poder entrar em combate e libertar todo o poder da magnifica shotgun.

E que abençoada seja ela! John Carmack e companhia sabem bem como colocar um sorriso na minha cara, as armas tem um poder visual e sonoro assombroso e a forma como os inimigos reagem ao impacto dos projecteis é extremamente gratificante. Também digno de louvores é a IA, não esperem inimigos estáticos e previsíveis, eles vão rodopiar, saltar, escalar  de forma imprevisível tornando os encontros caóticos e intensos. Para além das tradicionais armas de fogo, RAGE possui um interessante sistema de engenharia que permite a construção de armas secundárias, basta para isso recolher objectos pela Wasteland (a sério apanhem tudo, mas tudo o que puder ser recolhido) e ter as “receitas” quer seja de sentry guns, robôs, granadas, carros-bomba telecomandados, etc.

Mas talvez mais importante que o próprio jogo é o novo motor de jogo, o id Tech 5. A id sempre foi uma montra tecnológica e os seus motores de jogo (embora cada vez menos) sempre foram licenciados para terceiros. Pessoalmente, a verdadeira desilusão de Rage nem é propriamente o jogo em si, mas precisamente o seu motor de jogo. Aos meus olhos de leigo parece-me um motor que já nasceu desactualizado e condenado a morrer, certas funcionalidades que dou por garantidas hoje em dia como luzes e sombras dinâmica e física nos objectos, nem vê-los, as texturas já todos sabem têm uma baixa resolução, shaders são rudimentares e pior que tudo, as texturas têm terríveis pop-ins, ou seja, são carregadas em jogo. Entretanto já saíram drivers e patches que reduziram esta situação, mas ainda é evidente. Mas o “pior” é que a arte que este motor suporta é lindíssima, a sério é muito boa. É essa arte, que faz Rage parecer arte conceptual em movimento que acaba por esconder as limitações do id Tech 5. É como olhar para uma lindíssima mulher que tem uma verruga peluda na cara. A mulher é bonita mas por mais que queiramos não conseguimos desviar o olhar daquele ponto.

O grande ponto de interesse tecnológico do id Tech 5 são as mega-texturas, que basicamente são enormes texturas que eliminam a necessidade de as ter que repetir constantemente como é habitual. Pode ser uma maravilha tecnológica, e provavelmente muita da beleza artística que referi advém da capacidade de poder “pintar” o mundo sem limitações, mas no final do dia não acho que o resultado final seja assim tão significante. Mas volto a reforçar, a direcção artística é maravilhosa, o jogo parece uma pintura viva, e isso é interessante, já que esse nunca foi um aspecto particularmente preponderante nos jogos da id. Muitos dirão que os visuais pós-apocalípticos já estão batidos hoje em dia, mas se formos a ver bem não há muitos jogos que retratem uma civilização actual destruída por uma catástrofe. Borderlands era noutro planeta, Fallout 3 tem um estilo muito próprio centrado nos anos 50, S.T.A.L.K.E.R. tem um estilo soviético. O mundo de Rage antes da queda do meteorito era como o nosso e isso não é assim tão usual.

Para fechar o capitulo do motor de jogo, como disse, acaba por ser ele a grande desilusão. É que o jogo em si não é memorável, e como não é uma montra tecnológica não consigo ver bem qual o futuro resultante destes sete anos de trabalho. É que tenho imensas duvidas que alguém vá querer adoptar este motor. É um motor que a meu ver nasceu fora de tempo, aliás um pouco à semelhança do próprio jogo.

Acho que deveria falar um pouco do estado em como o jogo foi lançado no PC, acho que já todos vocês sabem dos problemas que o jogo teve, com inúmeros bugs e incompatibilidades com algumas placas gráficas. Não sei nem quero saber de quem é a culpa e o que causou esta situação, mas é completamente inaceitável, especialmente vindo de quem vem. Como é habitual, não vou penalizar em demasia o jogo por isso, mas é uma situação que deve ser apontada.

Finalmente e para terminar, o multiplayer. É outro aspecto interessante porque a id sempre esteve na vangurada do multiplayer, alguns dos seus jogos foram pioneiros e autênticos colossos online como o Quake 3 Arena. É irónico que o multiplayer de Rage seja tão… apagado e discreto. E mais curioso ainda é a necessidade que tiveram em mudar o que seria habitual esperar deles. Por um lado tiro o chapéu ao escolherem um caminho diferente do esperado, mas por outro tudo no seu multiplayer dá a sensação de ser dispensável, parece daqueles jogos que têm multiplayer “só porque sim”. Há basicamente dois grandes modos de jogo, Road Rage que é centrado em combate de veículos e um co-op que até é bastante divertido. Também aqui, Rage parece um jogo um pouco à margem do presente.

Tal e qual os Hussardos com que abri o artigo, Rage e a id actual fazem-me lembrar aqueles orgulhosos cavaleiros que ainda causavam espanto, mas que no fundo todos sabiam que já tinham perdido o comboio da história. Estes sete anos parece-me que foram completamente desperdiçados num jogo que, embora seja bom, vai ser esquecido daqui a uns meses e num motor tecnológico nado-morto. Para sobreviver, a id terá de se adaptar por mais que isso fira o seu orgulho, caso contrário, terá o mesmo destino desses valentes Hussardos e transformar-se-á numa simples curiosidade histórica.

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