DayZ, The Walking Dead e o Pingo Doce
Jogos de zombies hein? Como os mortos vivos que retratam, por mais que queiramos eles nunca se vão embora. Shooters, RPG, estratégia, aventuras… o tema alastrou-se praticamente a todos os géneros possíveis e imaginários.
Não vou tentar compreender qual a causa para o fascínio que nos atrai para a ideia dum desastre zombie, mas é fácil tentar compreender o porquê de jogarmos esses jogos. Pura gratificação de matar pessoas sem qualquer sentimento de culpa ou questões morais. No entanto fica a questão no ar, será que algum destes jogos reflecte algum realismo? Será o modo zombie do Black Ops ou Left 4 Dead um reflexo do que aconteceria caso um apocalipse zombie realmente acontecesse? Óbvio que não. Consigo ver alguma defesa em casos como Dead Island ou Dead Rising, mas mesmo assim as suas fundações são centradas na ideia de que é um jogo e como tal deve apresentar ao jogador elementos que satisfaçam esse facto.
E não é só nos videojogos, também na literatura e TV os mortos-vivos já invadiram e “infectaram” as massas. O caso mais recente e curioso é a graphic novel/série de TV The Walking Dead. É interessante como um tema ainda nicho conseguiu cativar e converter um público que, de outra forma, não prestaria qualquer atenção à temática zombie, porque “isso é para putos e/ou geeks”. E porquê é que The Walking Dead tem sucesso? Porque não se foca nos zombies mas sim nas pessoas e nas relações humanas, espelhando bem o que aconteceria aos sobreviventes caso uma situação critica realmente explodisse. E isso cativa as pessoas.
A Telltale lançou há poucos meses (semanas?) o primeiro episódio da sua versão “videojogavel” oficial do sucesso The Walking Dead, o jogo foi bem recebido e aparentemente capta de forma competente o espírito da graphic novel. Mas não é do jogo da Telltale que me interessa falar, o que tem andado nas bocas do mundo é DayZ, um mod que através da sua extrema simplicidade está-se a tornar num dos jogos mais importantes do ano e ironicamente capta a filosofia do que fez The Walking Dead um sucesso, duma forma que o produto “oficial” não consegue.
Atenção que DayZ não tem qualquer ligação com a marca The Walking Dead, mas os seus trunfos são precisamente os mesmo que trouxeram sucesso à graphic novel e posteriormente à série. Ambas as obras têm em comum o facto de que os zombies são apenas uma desculpa para uma experiência muito mais interessante e gratificante, o estudo das relações e interacções humanas e a forma como reagem perante a adversidade. O combate contra hordas de mortos vivos é obviamente central, mas é apenas uma das facetas necessárias para sobreviver.
Em DayZ a chave para sobreviver não passa pela perícia e pontaria com uma arma, mas sim na forma como o jogador se relaciona com os restantes sobreviventes. Nesta altura estão a pensar em Left 4 Dead e na forma como é necessária cooperação entre os jogadores, mas como bem sabemos o espírito humano nem sempre se traduz em cooperação. O humano é um animal que quando se vê envolvido em situações de stress entra num modo de sobrevivência que o leva a adoptar comportamentos que normalmente consideraria reprováveis, não precisamos de ir muito longe, basta recordar as infames “promoções Pingo Doce”.
O jogador parte para o mundo de DayZ sem objectivos, apenas resta-lhe sobreviver, e como um verdadeiro sandbox de sobrevivência DayZ não pede nada ao jogador, cada um é livre de tomar as decisões que bem entender. É aqui que os paralelismos com The Walking Dead entram. Cada jogador tem um experiência diferente porque as interacções com os restantes sobreviventes são sempre uma incógnita. Aquele sujeito é amigo? Virá com más intenções? Devo confiar nele? Será que ele me quer matar? Será que me vai assaltar? Estarei a cair numa armadilha? Deverei salvá-lo da morte certa? Será que se o fizer ele vai retribuir o gesto? Será que devo engana-lo? Não quero passar a noite sozinho, deverei juntar-me aquele grupo? Estamos rodeados de zombies! Antes ele que eu! É esta jogabilidade e narrativa emergente que torna DayZ num produto tematicamente mais fiel à ideia explorada por The Walking Dead do que a adaptação oficial que em contraste é completamente rígida.
Os relatos dos jogadores que tentam sobreviver ao apocalipse zombie de DayZ são assustadoramente semelhantes aos que, imagino, aconteceriam na vida real. Bandos que se juntam para assaltar e matar pessoas indefesas (semelhante ao que vemos em Dawn of Dead por exemplo), momentos de pânico em que pessoas abandonam amigos para sobreviver, indivíduos que são enganados e usados como iscos para hordas de zombies, amizades profundas formadas por momentos heróicos, sacrifícios em prol do grupo, momentos de egoísmo e altruísmo, traições e uma constante desumanização digna duma tarde no Pingo Doce.
Toda a situação que vimos no Pingo Doce embora tenha um lado obviamente cómico fruto da ausência de qualquer bom senso, mostra um lado terrivelmente obscuro que pessoalmente muito me assustou. A forma como tão rapidamente pessoas “normais” fazem clique e entram num estado de completa loucura é impressionante e basicamente transmite-me poucas dúvidas que, se uma situação semelhante à The Walking Dead ou DayZ acontecesse, eu teria muitas dificuldades em confiar em alguém, por mais próximo que seja.
E este acaba por ser o ponto de partida para quem é lançado no mundo de DayZ. Sobreviver vai contra a ideia central da confiança, por isso é que a experiência é tão gratificante e inovadora, porque embora algo semelhante possa acontecer em quase todos os MMO’s quase nenhum coloca o jogador numa situação tão stressante e vulnerável. DayZ está a explodir neste momento e tem o potencial, caso as coisas corram bem, de se tornar no próximo fenómeno na linha de Minecraft. E à semelhança do jogo criado por Notch, DayZ é muito complicado de ser classificado. É um shooter? Sim. É survival horror? também. Sandbox? Yep. Mas pessoalmente gosto mais de o ver como um estudo interactivo de relações humanas, sinceramente vejo aqui muito potencial para um estudo interessante nesta área.
Resta-me dizer que DayZ é um mod para o ArmA II (que sofreu um boom de vendas por causa do mod) e está neste momento em alpha. Já se fala em eventualmente crescer para um produto comercial ou para um DLC oficial para o futuro ArmA III, resta esperar e ver o que vai nascer dali, mas avizinha-se um futuro especial.