Análises

Animal Crossing: New Horizons

O jogo sobre nada

Versão testada: Nintendo Switch

Jerry:  Então sobre o que é que é a série?
George:  É sobre nada.
Jerry: Sem história?
George: Não, esquece a história.
Jerry: Tens de ter uma história.
(…)
Jerry:  Acho que tens aqui qualquer coisa.

Em 1992, Jerry Seinfeld e George Costanza discutiam na mesa de um restaurante uma ideia para um programa de televisão sobre nada. Esse programa era Seinfeld (ou, pelo menos, a versão de Seinfeld que existia dentro de Seinfeld) e foi uma das séries mais adoradas e influentes de sempre. Sempre que alguém me pergunta sobre o que é o Animal Crossing, esta cena vem-me à cabeça.

Em Animal Crossing: New Horizons mudamo-nos para uma ilha deserta juntamente com uns animais antropomórficos e, apesar de podermos fazer uma data de coisas, não temos de fazer absolutamente nada. Sim, em princípio quase todos os jogadores vão querer pagar as prestações da casa para passar de tenda para mansão e, no papel de representante da aldeia, temos o poder para construir pontes, mudar casas de sítio ou alterar a geografia da ilha quase como quisermos, mas tudo isto é opcional.

O que fazer numa ilha tropical? Porque não enchê-la de flores e tentar criar espécies híbridas com novas cores? Pescar é um passatempo óbvio, mas também se podem apanhar insectos com uma rede ou desenterrar fósseis, visto que, por alguma razão, as ilhas estão repletas deles. Para passar o tempo como uma pessoa rica pode-se coleccionar roupa e peças de mobiliário e, claro, tentar ter a maior casa possível. Os mais dados ao desenho podem fazer os seus próprios padrões para serem usados em roupa, mobília, quadros ou na bandeira da cidade, entre outras coisas. O que não falta são coisas para fazer.

Quem quiser canalizar o seu Nick Offerman interior pode arregaçar as mangas, pegar nas ferramentas e construir mobília, entre muitas outras coisas. Isto do chamado crafting é muito popular ultimamente (talvez em grande parte graças ao Minecraft), mas encaixa no Animal Crossing como uma luva de trabalho. Para construir, precisamos da receita para cada item e matéria prima que obtemos das árvores e pedras; não há uma enorme variedade de materiais pelo que, grande parte das vezes, o maior impedimento a construir algo é ter a receita certa. Algumas receitas podem ser compradas, outras recebemos de vizinhos, balões que sobrevoam a ilha ou quando a inspiração nos atinge ao colecionar itens. Além de construir, também podemos alterar muitas coisas, mudando a cor, aplicando padrões nossos ou mudando pormenores como autocolantes numa guitarra. Apesar de podermos fazer o que quisermos, agora há um bocado mais de incentivo a fazer certas coisas, havendo sempre tarefas (como plantar árvores de fruta ou pescar um certo peixe) que são recompensadas com Nook Miles, pontos que podem ser trocados por vários prémios. Além destas tarefas que mudam diariamente, também somos premiados com Miles ao atingir certos marcos ao longo do jogo, como quebrar um certo número de ferramentas, plantar todos tipos de árvores de fruto ou fortalecer amizades com os outros aldeões.    

O dinheiro faz o mundo girar e isso continua a ser verdade aqui. Todos os Bells (a moeda de Animal Crossing) estão ligados ao Tom Nook, o cão mapache responsável pelo empreendimento de habitar a nossa ilha deserta. Apesar de ser conhecido como um senhorio explorador, Nook talvez seja incompreendido; não só nos deixa pagar a casa e todas as obras no tempo que quisermos sem quaisquer juros, como é a nossa fonte de rendimento, comprando-nos qualquer coisa através dos seus adoráveis filhotes: mobiliário, roupa, peixe, bichos, pedras, ervas daninhas, enfim, qualquer coisa que nos passe pelas mãos. Queria toda a gente poder pagar um casarão só a vender borboletas e aranhas.

Mesmo numa ilha isolada, ninguém é uma ilha isolada (citação adaptada para não ofender sensibilidades) e os animais que habitam e visitam a nossa ilha são, no mínimo, entretenimento puro. Há centenas de personagens diferentes com vários tipos de personalidades: a Alli é uma jacaré snobe, o Lyman é um coala desportista, o Monty é um macaco mal humorado e o Blathers é um mocho verborreico com medo de insectos que faz a curadoria do nosso museu. Há personagens para todos os gostos e ódios, podemos convidar habitantes de outras ilhas ou tentar expulsar quem quisermos da nossa vizinhança, algo que às vezes dava jeito na vida real. O charme e humor que vem dos diálogos e relações entre os animais é uma parte tão importante do jogo como doar peixes, insectos e fósseis ao museu e o que não falta são momentos adoráveis, como ver alguém a ver flores de perto e a consultar um livro de botânica ou um grupo a juntar-se na praça principal para cantar.

Também podemos interagir com outros seres humanos – algo que faz muita falta agora – tanto localmente como online. Cada aldeia suporta até oito pessoas ao mesmo tempo e para abrir os portões a visitas ou dar um pulo a outras ilhas, basta falar com o Orville, o dodo que trabalha no pequeno aeroporto das Dodo Airlines.  Depois de já nos termos encontrado com amigos, podemos registá-los como melhores amigos, o que nos deixa ver a qualquer momento quando estão online e a aceitar visitas, mandar mensagens e também enviar correio. Para jogar com pessoas que não estejam na nossa lista de amigos da Switch, basta criar um Dodo Code, uma pequena palavra passe que dá acesso ao nosso recanto no meio do mar. O multiplayer online está integrado de uma forma intuitiva e nada intrusiva, enquadrando-se no resto do jogo e, apesar de ser simples, faz praticamente tudo o que se pode esperar no Animal Crossing. O que não faz, como de costume, é comunicação por voz – para isso usa-se a app de smartphone Nintendo Switch Online, que é surpreendentemente útil, permitindo-nos também usar o telemóvel para escrever, ver quem está online, mandar mensagens para os amigos (mesmo que não estejamos a jogar) e usar a câmara para obter designs através de códigos QR, sendo até possível ir buscar designs aos Animal Crossing da 3DS.

Ligada de certo modo ao online, vem a questão dos cloud saves. Quem subscreve ao serviço Nintendo Switch Online (necessário para usar as funções online deste jogo), pode ter o progresso dos seus jogos guardados na cloud, útil no caso de avaria ou de trocar de consola. Animal Crossing: New Horizons é um dos poucos jogos que não tem esta funcionalidade, supostamente para evitar “batotas” e porque o ficheiro de jogo está associado a todos os perfis presentes na nossa consola, em vez de apenas um, como é costume. Não é uma justificação muito boa, especialmente quando estamos a falar de um jogo onde facilmente se investem centenas de horas, tendo todo o interesse que o nosso progresso esteja o mais salvaguardado possível. Além disso, jogadores que queiram usar a sua conta em mais do que uma Switch (por exemplo, numa Switch normal e numa Lite) não o vão poder fazer, uma vez que o save está preso a uma consola. No futuro a Nintendo vai disponibilizar a possibilidade de recuperar a nossa informação dos servidores no caso de avaria, roubo ou perda do sistema. Ainda não se sabe como e quando isto vai funcionar.

Isto exacerba o que, para algumas pessoas, pode ser o pior problema do jogo: apenas se pode ter uma ilha por consola. Ou seja, é preciso dividir a ilha com outras pessoas que usem a consola, o que é extremamente limitativo e cria aldeões de primeira e segunda classe, uma vez que apenas um jogador é o representante da aldeia e pode avançar com planos de construção. Rouba-se a vários jogadores o prazer de preencher o seu próprio museu ou criar uma ilha à sua maneira. Partilhar uma aldeia pode dar azo a confusões e planos arruinados – imaginem acordar um dia e ver que o vosso filho mandou todas as árvores de fruta abaixo e mandou tantas cacetadas com a rede de apanhar insectos na cabeça de um aldeão, que este se zangou e decidiu mudar-se. Apesar de ser extremamente engraçado e algo único ter uma ilha partilhada, dada a natureza do jogo, é natural que isto seja uma grande desilusão tanto para os jogadores que estavam entusiasmados com a ideia de introduzir Animal Crossing a pessoas que não costumam jogar, como a pessoas que queriam experimentar o jogo, mas têm receio de fazer algo de errado na ilha do jogador “principal”.        

Faltam algumas coisas e personagens presentes em jogos anteriores, mas é possível que apareçam em actualizações futuras e, de qualquer modo, conteúdo não falta. Desde melhorias à interface e sistemas mais convenientes e intuitivos às várias novidades como poder colocar itens em qualquer lado da aldeia e alterar a própria geografia da ilha, este Animal Crossing não é só mais uma iteração com a cara lavada, é um verdadeiro salto em frente. Esse salto também se nota nos gráficos, com um sistema de iluminação que representa muito bem a maneira com a luz incide e reflecte em variadíssimos materiais, dando um aspecto muito mais natural a tudo, apesar do estilo simples e cartoonesco. Há algo de relaxante em ver a luz a mudar à medida que o dia avança, enquanto pétalas de flores de cerejeira esvoaçam são levadas pelo vento e borboletas projectam a sua sombra na água do rio. No modo TV a resolução é 1080p e no modo portátil é 720p, correndo a 30 frames por segundo e sem anti-aliasing em ambos os modos. O sacrifício de framerate face às entradas anteriores da série é mais do que compensado pelo aumento da qualidade gráfica, resultando num jogo muito bonito.

A banda-sonora também é fantástica e extremamente relaxante, com a música a mudar de hora a hora e com a altura do ano, isto para não falar das óptimas faixas do K.K. Slider, o cão cantautor (cãotautor?) que dá concertos na nossa aldeia quando ela atinge um certo número de habitantes e “qualidade de vida”. Como é habitual, também temos a hipótese de arranjar as versões gravadas dos grandes hits do K.K. e colocá-las em aparelhagens (ou outros sistemas de som) para ouvir em casa, ou até fora, agora que podemos colocar itens em qualquer lado. Além disso, também é possível usar as fenomenais capas dos singles como decoração, um toque muito bem-vindo. Os efeitos sonoros ajudam imenso a criar ambiente, quer seja o barulho do vento e árvores a abanar, os nossos passos na relva e areia ou até o som da água a abanar dentro do regador.  

Cada um experienciará Animal Crossing: New Horizons à sua maneira: uns podem jogar relaxadamente e tratar da aldeia nas calmas, outros podem planear tudo ao pormenor para ter a ilha perfeita. Como o jogo ocorre em tempo real, quem quiser até pode alterar a hora e data da consola para “viajar no tempo” para não ter de esperar por isto ou aquilo. Eu não julgo (muito). Tendo dito isto, Animal Crossing é um jogo onde a habilidade mais importante é a paciência. As flores e árvores demoram a crescer, obras levam tempo a ser financiadas e acabadas, as lojas têm horários e mudam de stock diariamente, alguns peixes só existem em certas alturas do ano e horas do dia, quase tudo depende do tempo.

Falar de um jogo como uma “experiência” é um lugar comum que pode fazer revirar alguns olhos, mas parece mais adequado do que nunca fazê-lo, não só pelo jogo em si, mas também pelas circunstâncias externas e toda a entreajuda e criatividade estonteante das várias comunidades online. Desde designs ridiculamente bem feitos e memes a histórias de encontros românticos e cerimónias de finalistas, é difícil não ficar rendido ao fenómeno social que tem rodeado Animal Crossing: New Horizons.  

Nestes tempos incertos e assustadores em que temos de estar isolados é reconfortante dar um saltinho a uma ilha paradisíaca com animais fofos, onde praticamente nada de mal pode acontecer. O avançar dos ponteiros do relógio não representam a urgência do tempo a acabar, mas o conforto de que vem aí algo melhor. Enquanto esperamos, nada melhor do que entrar em contacto com o nosso lado artístico, construir coisas, descobrir novas maneiras de estar com os outros, ou então, simplesmente… fazer nada.

Nota editorial: Cópia fornecida pela editora para efeitos de análise.

Veredito

Nota Final - 9.5

9.5

Relaxante, engraçado e fofo, Animal Crossing: New Horizons é um brilhante escape que veio na altura certa, mas que não seria um jogo pior em qualquer outra altura.

User Rating: 2.6 ( 5 votes)
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