Análises

Bloodborne

Será possível separar Bloodborne da saga Souls? É uma pergunta difícil, e depois de muitas horas de jogo ainda há determinados hábitos que é difícil esquecer. A proposta da From Software é relativamente simples – aqui está um jogo inspirado em tudo o que fizemos anteriormente, mas deixem os escudos para trás se faz favor.
É uma mudança que ao primeiro parece completamente banal, uma vez que já jogamos tanto tempo Souls sem escudo. O que é que poderá mudar aqui para o jogo se sentir assim tão diferente? Quase tudo.

Primeiramente muda a época, portanto, esqueçam os escudos e deem boas vindas a armas de fogo. Um jogo inspirado na era vitoriana, em que o aspeto visual muda completamente a atmosfera do jogo. Seguidamente, esqueçam ficar passivamente à espera dos inimigos, uma vez que não têm escudo, e porque se o fizerem serão imediatamente linchados pelas combinações deles, uma vez que o combate está mais rápido do que nunca.
Se isto não for suficiente temos ainda armas que se transformam, combinando diferentes armas em apenas uma, quer sejam duas de ataques físicos ou até de fogo.

bloodborne review 1A From Software tem por hábito gostar mais de mostrar do que dizer e este jogo não é exceção. Depois de uma pequena introdução na clínica de Iosefka, em que após uma transfusão de sangue temos umas visitas algo inesperadas, o jogo incumbe a tarefa de criar o nosso avatar para seguidamente nos dar o controlo do personagem. A cidade de Yharnam está repleta de criaturas grotescas, consequência da epidemia que a atravessa, transformando os seus habitantes em bestas ferozes e irracionais. Uns tentam combater este ciclo, enquanto outros sucumbem e deixam a sua humanidade para sempre. Não nos é dada qualquer direção sobre o que fazer e grande parte do prazer do jogo é isso mesmo, explorar o desconhecido e fazer a nossa própria história.
A morte será umas das coisas com que nos teremos de habituar rapidamente, como não poderia deixar de ser, afinal isto é a From Software. Normalmente não demora muito até que isto aconteça, pois meros instantes após controlar-mos o nosso personagem damos de caras com um enorme lobisomem. Se o estão a ver é provável que ele também, e com ele vem uma das primeiras lições que o jogo tenta ensinar, conheçam os vossos inimigos.

Bloodborne é um misto daquilo que a saga Souls nos deu até agora. Exploração, combate, dificuldade quanto baste, são tudo ingredientes que fazem parte do pacote, no entanto, foram feitas várias mudanças nas mecânicas para que o jogo possa ser novo, sem o ser totalmente.
As armas de fogo são um elemento muito importante na nova dinâmica de combate. Enganem-se aqueles que pensam que estas são fonte de dano, não (se bem que existe uma ou outra exceção). O papel fundamental das armas de fogo é o de fazer parry, algo semelhante ao que escudo fazia. Acertem com uma bala mesmo antes de um ataque inimigo vos acertar e vêm este cair nos seus joelhos pronto para levar com um riposte, aqui chamado ataque visceral. Para além da satisfação visual e sonora que este ataque proporciona também causa grande dano, e quando é efetuado num boss, é quando nos apercebemos do quão importante é aprender esta mecânica, que pode inclusive ser feita com alguma distância, uma vez que estamos a falar de projéteis. Se acontecer ficar sem balas é possível, sacrificando vida, obter 5 balas de sangue substituindo estas as normais na prioridade de uso.

bloodborne review 2Foram feitos ajustes e mudanças, algumas radicais, à formula de combate para que esta possa ser diferente. A maior delas é sem dúvida as armas transformáveis, portanto, todas as armas têm dois modos de ataque, isto para além do típico ataque leve e forte, que existem. Um pressionar no botão L1 faz uma determinada arma transformar-se noutra. Peguemos no Kirhammer por exemplo, equipado normalmente é uma espada normal com os seus ataques leve e forte, mais os ataques de corrida, mais ataques depois de um roll. Mas nas costas do nosso personagem temos um martelo, pronto a ser usado a qualquer momento, bastando para isso apenas o pressionar de um botão. Isto faz com que no meio de sucessivos ataques leves possamos carregar no botão de transformação, e a arma se transformar num martelo. A melhor comparação que podemos fazer é com o switch axe de Monster Hunter que é um machado e uma espada na mesma arma.

Todo o moveset da arma transformada é igual ao da arma normal, o que quer dizer que a possibilidade de encadear combinações sobe de forma considerável, pois sobra apenas a nossa imaginação para usar da melhor maneira todos os movimentos que temos ao nosso dispor. De notar que não é possível começar um ataque carregando apenas no botão de transformação(isto apenas mudará arma para a sua segunda forma). Apenas se já tiver sido feita uma ação antes, como um ataque ou um dodge, será possível iniciar uma combinação de ataques com a transformação. Não é possível usar todas as armas com as duas mãos, e para quem vem de Souls não se admire de todo se ao usar o normal botão para esse efeito, triângulo, se cure, pois agora temos um botão dedicado ao frascos de cura, retirando-o da barra dos itens.

Uma vez que não existe escudo, não existe maneira de nos protegermos a não ser desviar dos ataques (correção, existe um escudo, mas quem está lembrado do Pendant de Dark Souls fica com uma ideia do que é que Hidekata Miyazaki está a fazer com este item). Assim sendo, e como maneira de minorar a ausência desta defesa foi criado um sistema de recuperar a vida perdida com os nossos ataques. Cada vez que levamos dano nem toda a nossa barra de vida desce imediatamente, há uma percentagem, mostrada a laranja, que é possível recuperar, mas para isso temos poucos instantes para o fazer, usando para isso a melhor ferramenta que temos à mão, a nossa arma. Este sistema penaliza os jogadores que recuam imediatamente após levar dano e recompensa quem vai atrás do prejuízo, não o podendo recuperar totalmente, mas transformando o sistema de combate, que até aqui era algo passivo, em algo muito mais dinâmico, pois apesar de termos itens de cura com abundância, apenas podemos carregar um determinado número destes.

O sistema de backstab foi também mudado, uma vez que durante as lutas de pvp, girava quase tudo em volta apanhar o adversário desprevenido para agarrar esta oportunidade, criando situações de lutas em círculos constantes. Continuamos a ter este tipo de mecânica, mas é preciso trabalhar mais para que possamos fazê-la com sucesso, entrando em cena os charge attacks. Com o pressionar continuo do botão forte de ataque o personagem carrega o ataque, dando assim mais dano que o normal. Se por acaso conseguirmos apanhar um adversário/inimigo desprevenido pelas costas ele cai e é possível executar, não um backstab, mas um ataque visceral, que dá muito dano.
Estas mudanças tornam o combate muito mais dinâmico, mais ofensivo, mais rápido. Ao invés de estarmos constantemente à espera que nos ataquem para que assim nos possamos defender/reagir, o incentivo é para passar ao ataque, não ficar na expectativa.

bloodborne review 3A exploração é um dos aspetos mais importantes de Bloodborne. Para isso é necessário criar incentivos para o fazer, mas mais importante é necessário criar um mundo coeso, ligado, que naturalmente se una para que seja possível criar um mapa dos vários sítios por onde passamos, e não apenas vários retalhos juntos para assim se formar um “mundo”.
Temos um pequena base, um pequeno safe haven, onde podemos subir de nível comprar itens/armas e sobretudo descansar da insanidade que é Bloodborne. Quando voltamos à aventura, tudo se liga, tudo se conecta, tudo tem sentido. O sistema de checkpoints é representado por uma pequena lâmpada que normalmente está no início de uma nova área, semelhante aos bonfire. Se morrerem é para aqui que voltam para continuar a aventura, sendo que todos os inimigos regressam, mas tudo o que apanharem ficará connosco para desta vez ultrapassarmos as dificuldades. Não existe um sistema de viajar entre estas lâmpadas. Para isso temos que voltar à nossa “base”, e procurar a última lâmpada acesa, mostrando assim um problema que o jogo tem, mas falado mais à frente.

A nossa moeda de troca, os ecos de sangue, que ganhamos após derrotar qualquer inimigo, ficam no chão, no local da nossa morte, prontos a serem recolhidos, mas morram antes de os terem apanhado e desaparecem para sempre. Pode ainda acontecer o inimigo que nos matou, ou um dos que que estava por perto, ficar com eles, provando que ir a correr atrás do que é nosso nem sempre é a melhor ideia.
O sistema de cura mistura coisas de Demons Souls e Dark Souls, ou seja, temos um número infinito de itens que podemos ter, mas só podemos carregar 20. Não é um sistema do qual seja adepto, pois podem surgir situações, como aconteceu, em que um boss estava a revelar-se bastante difícil e consumi todos os itens que tinha, fazendo com que morresse e não tivesse mais, tendo que ir fazer grind/farm para que assim pudesse voltar para tentar passar esta barreira. É um problema menor, uma vez que uma passagem pela área inicial nos dá rapidamente 20 itens de cura, mas não deixo de sentir que o ritmo de jogo é quebrado por causa do sistema ser assim.
As runas de Caryl atuam como anéis, podendo equipar 4 com diferentes efeitos passivos, como mais defesa, mais stamina, etc. Não é de todo claro, ao início, como podemos equipar estas habilidades, uma vez que tem que se ganhar esse direito, mas é resposta é muito simples, explorem e serão recompensados.

Existem cantos, becos e atalhos por todo o lado, e é muito simples falhar conteúdo por completo, mesmo áreas completas porque não exploramos com mais afinco uma determinada sítio, como aliás me aconteceu. Os atalhos são a coisa mais importante que devem considerar quando exploram uma nova área, pois os checkpoints são poucos e quando se virem a bater numa “parede” porque um boss/inimigo está a dar mais trabalho, custa muito ter que fazer o caminho todo de volta, por isso se virem uma porta fechada algures tentem saber como a abrir, pois certamente ela reduzirá bastante o caminho até ao objetivo.
O elemento RPG do jogo foi de certa maneira simplificado. Temos menos atributos para considerar no momento da subida de nível, o que a longo prazo pode provocar algumas semelhanças naquilo que são as configurações mais viáveis de personagem, que não são possíveis de remediar, pois não existe maneira de fazer reset aos nossos atributos.

bloodborne review 4A quantidade de armas disponíveis gerou uma certa discussão na comunidade. Admitido pela própria From Software, o jogo iria ter menos armas que títulos anteriores, mas seriam estas mais únicas, mais diferenciadas. Se anteriormente tínhamos 5 espadas e provavelmente usaríamos uma delas e nunca mais queríamos saber das outras, aqui é diferente, pois todas elas usam argumentos que as favorecem/desfavorecem em face a outras. Como existe o sistema de transformação a abordagem vai ter que ser necessariamente diferente, pois temos várias possibilidades concentradas numa arma. Um chicote e uma espada, uma lança e uma arma, uma espada e uma foice, alguns exemplos das combinações que temos. A redundância foi praticamente eliminada, e todas têm o seu lugar, uma vez que são únicas, nem sempre mais é necessariamente melhor.
Depois temos um sistema de gemas de fortificação de armas, que ajuda ainda mais a diferenciar. À medida que progredimos vamos apanhando várias gemas que nos permitem melhorar as armas de uma determinada maneira, sem que para isso seja necessário forjar e melhorar outra arma igual. Mais dano físico, mais dano elemental, adicionar veneno nos ataques, entre outras. Isto permite alterar a nosso belo prazer as propriedades que queremos permitindo modificar quando e como quisermos.

Há, no entanto, mecânicas que continuam fiéis a si mesmas, e o sistema online não poderia de deixar de existir no jogo. Mensagens no chão com vários “conselhos”, manchas de sangue representando os últimos momentos de vida de um outro jogador, ou mesmo as sessões de cooperação com estranhos sempre que um boss se revele mais difícil, não esquecendo como é óbvio a adrenalina das invasões de outros jogadores prontos para nos matar. Apesar de alguns problemas de conexões é possível jogar com um amigo com relativa facilidade, desde que os níveis entre os dois sejam semelhantes e estabeleçam uma password para que o jogo os conecte, usando para isso o consumível insight, que atua como barómetro da nossa progressão, e por vezes tornando o jogo mais difícil. Mas pedir ajuda não tem apenas coisas positivas, pois a partir do momento em que usemos o nosso item para o efeito, Beckoning Bell, é gerado no nosso jogo um novo inimigo, a Bell Maiden. E o que faz a Bell Maiden? É simples, usa também ela um sino, mas ela chama invasores para o nosso jogo, prontinhos para nos trucidar. Se a encontrarmos antes de alguém trespassar o nosso jogo pode ser que não hajam visitas inesperadas, mas cheguem tarde demais e preparem-se para o confronto.

bloodborne review 5É difícil ficar indiferente ao aspeto vitoriano de Bloodborne. A melhor comparação que podemos fazer é imaginar o que seria Sleepy Hollow de Tim Burton, transposto para videojogo. Bloodborne é um jogo de horror, até às vezes mais do que aparenta, onde a escuridão e o medo têm lugar. Por detrás do toda a ação que o jogo tem, está sempre escondida a mais grotesca das criaturas à espera de nos apanhar. Apesar do todo o aspeto degradante e decrépito de muitos dos cenários que encontramos, é inegável não ver a beleza de como estão retratados com uma dose de elegância, quer nos inimigos/cenários, que envergonha muitos outros títulos. A From Software já nos tinha habituado a ter mundos aliciantes, mas aqui conseguiram a sua melhor proeza até agora. Tudo está incrivelmente detalhado, mesmo apesar de o jogo não ser o melhor no departamento técnico. Em todos golpes que desferimos é jorrado sangue para todo o lado, ficamos inclusive banhados em sangue nas nossas vestes, que teima em não sair rapidamente. Todo o design desde o mais insignificante dos personagens ao mais imponente dos bosses é meticulosamente retratado, sendo difícil identificar mau gosto, ou mesmo classificar algo de nojento/degradante porque existe sempre um lado belo no meio de todo este caos.

A parte da animação continua excelente como sempre, todos os golpes são desferidos de forma natural, as transformações de armas, os gestos, os inimigos, etc. Existe um reparo a fazer nas animações, que é do tracking que os inimigos conseguem fazer em alguns dos seus ataques. Não é muito frequente, e este problema já vem da saga Souls, mas há determinados ataques que nos seguem mesmo após nos termos desviado deles, sendo impossível evitar receber dano. Isto também se aplica aos bosses, mas em todas as horas que passei com o jogo, deve ter notado isso umas 3/4 vezes, sendo que não é um problema de maior, ele está lá.
A parte sonora, embora com música maioritariamente ausente, exceto durante as batalhas com bosses, está soberba. Todos os inimigos estão sempre a murmurar qualquer coisa, seja um grunhido qualquer ou a falar consigo. É especialmente revelador da atmosfera do jogo quando chegamos a uma determinada área e ouvimos uivos, gritos, ou até “coisas” a cantarolar, mostrando que se há coisa que no jogo não falta, é personalidade. O feedback auditivo das armas é outro dos pontos muito bem conseguidos. Todo o clash de armas, o impacto delas no chão, quer nossas quer dos inimigos, proporcionam uma satisfação visual e sonoras únicas.

Mas há aqui algo que falta, o que é que é tradição nos jogos da From Software que falta falar… ah pois, problemas técnicos, o que seriam os jogos desta produtora sem isto, não ia agora quebrar a tradição. Existem alguns, mas o maior deles é o tempo de carregamento dos níveis, quando fazemos a viagem de e para o nosso hub. Quando chegamos quase a esperar um minuto para que possamos voltar à ação, é quando nos apercebemos que há aqui algo que não foi devidamente tratado, e quando morremos demasiadas vezes no mesmo sitio a questão começa a tornar-se deveras irritante. Para além disto existe um bug com os frames do jogo, em que bastantes vezes tem pequenos freezes que assolam a jogabilidade tornando a experiência menos orgânica e fluida.
Como não poderia deixar de ser, e sobretudo no modo de cooperação, a performance do jogo é afetada, tornando os dodges e rolls bastante complicados, pois exigem precisão na sua execução para escaparmos com vida dos ataques.

Bloodborne é um jogo longo, e carregado de conteúdo. A minha campanha demorou cerca de 55 horas, mas só comecei a minha segunda volta depois das 65 horas, uma vez que temos conteúdo que facilmente nos pode escapar. Mas foi sobretudo por causa das masmorras chalice que optei for ficar mais tempo. Estas masmorras totalmente opcionais são a resposta de Bloodborne à repetição. Separadas do jogo principal, algumas são geradas aleatoriamente para as tornar únicas e sempre diferentes. Temos que fazer progresso nas primeiras para que possamos desbloquear, com materiais, as seguintes, sendo que cada uma pode ter entre 3 e 4 níveis de profundidade, e sempre cada vez mais difíceis. Para além do factor aleatório é também aqui que vamos encontrar bosses, armas e inimigos únicos, que não existem em mais nenhum lado no jogo.

Existe um grande incentivo para as visitar ainda para mais quando podemos partilhar as masmorras que criarmos com os nossos amigos, podendo fazer sessões de co-op, desde que ambos tenham a mesma masmorra. A impossibilidade de continuar com os amigos, após derrotarem um boss, os diversos níveis parece um pouco difícil de compreender nesta função em particular, mas acaba por respeitar a regra da campanha principal.
No geral conseguem dar um incentivo extra para continuar a jogar, se bem que a repetição se instala relativamente cedo, uma vez que sofrem de poucas mudanças estéticas, dando a sensação de estarmos quase sempre no mesmo sitio, apesar das salas terem disposições diferentes.

Dito isto, e respondendo à pergunta inicial, é muito difícil separar Souls de Bloodborne, uma vez que este se inspira nessa saga. Esforça-se com grande mérito para tentar diferenciar as experiências, e o resultado é uma combinação absolutamente exemplar de design de níveis, exploração recompensadora e combate extremamente fluido e dinâmico. Não fossem as questões técnicas e teria levado outra nota final, mas no melhor pano cai a nódoa.
Bloodborne é um título obrigatório para quem tem uma PS4. Aprendam a respeitar o jogo e jogar segundo as suas regras de persistência, paciência e perseverança, e serão recompensados com uma adrenalina muito difícil de replicar noutro título qualquer, uma experiência única.

Veredito

Nota Final - 9.5

9.5

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