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Retrospectiva: Deus Ex

O nome Deus Ex já andava desaparecido há um bom tempo, a sequela falhada de 2003 parece que tinha destruído qualquer esperança dum eventual regresso. Mas este ano tivemos Deus Ex: Human Revolution que desencadeou um reacender pelo interesse na série. Antes de lerem a nossa análise ao Human Revolution, venham relembrar o original. Atenção que esta retrospectiva está carregada de spoilers, mas também só vai ler isto que já o jogou e quer recordá-lo, é para isso que servem as retrospectivas. Mas se quiserem saltar os spoilers passem directamente para a 3ª parte do artigo intitulada a “A Liberdade de Deus Ex”.

Deus Ex: Um FPS de acção

Por detrás da sua habitual fachada austera carregada de auto controle, JC Denton estava nervoso. Embora não o demonstrasse ele sempre fora uma pessoa impulsiva guiada pelas emoções. As recordações dos acontecimentos das ultimas horas continuavam a assaltar-lhe o pensamento. A total confiança que depositava no seu irmão Paul levou-o a cometer um acto de traição para o qual a sua rígida educação suíça sempre o demoveu, trair a UNATCO. Matar Anna Navarre e deixar fugir um perigoso terrorista parecia pura loucura e um caminho para a sua própria destruição, mas as palavras centradas em conspirações e traições que Paul lhe confessou toldaram-lhe qualquer juízo racional. Foi fácil escolher entre a lealdade do seu irmão a da organização para a qual trabalhava, mas estava a ser difícil viver com a sua escolha. Puxar o gatilho e matar Anna foi uma decisão impulsiva, mas uma necessidade. Era imperioso descobrir o quão fundo ia a toca do coelho e poupar Lebedev era um dos requisitos, requisito não compatível com a existência da agente russa.

JC teve a sorte do seu acto ser abafado por lealdades e amizades dentro da própria UNATCO e a sua traição passou como um acidente aos olhos das instâncias superiores, no entanto ele tinha a certeza que mais cedo ou mais tarde o conhecimento das suas acções, à semelhança dum virus, se espalhariam pela organização, a começar pelo agente Gunther Hermann, melhor amigo da falecida Anna. Como tal, JC não se importou de acelerar o processo, ele sabia que o que iria fazer agora não teria qualquer desculpa. Cometer um claro acto de terrorismo e traição ao ajudar o Paul e assaltar uma instalação controlada pela UNATCO, transmitindo uma mensagem de ajuda a terroristas seria a gota de água.

A forma como iria agir seria a mesma de sempre, a única que ele conhecia, a mais simples e directa e a que o seu irmão sempre reprovou. Segundo Paul as provas que incriminavam a UNATCO encontravam-se na cave das instalações, protegido por mortais e complexos sistemas de segurança. JC não tinha tempo nem paciência para grandes rodeios e iria desactivar parte dos sistemas com um par de LAM’s e caixas de TNT cirurgicamente colocados. Enquanto esperava pelo inevitável conjuntos de explosões que certamente iriam alertar toda a base, JC já se preparava para o previsível banho de sangue, activou as augmentations necessárias, mais precisamente a protecção balística e regeneração. Quando terminou o breve check up à sua fiel e personalizada metralhadora de assalto, uma grande explosão deu o sinal de partida. JC entrou num intenso estado de concentração, relembrou-se da sua infância, de quando perdeu os pais, de quando foi separado do seu irmão e da posterior vida solitária, uma vida que lhe tinha sido imposta contra sua vontade.

Como uma arma automatizada, JC levantou-se e começou a fazer o que melhor sabia fazer. Vagas de guardas tentavam em vão derrubar uma ameaça que ainda há minutos atrás era uma cara aliada. Por entre aqueles corredores estreitos e sombrios JC era imparável, cada um dos pobres assalariados da UNATCO entravam para um matadouro e todos eles sucumbiram ao poder de fogo daquela mistura entre humano e maquina. Poucos minutos depois, um profundo silêncio tomou conta daquele espaço, o cenário era desolador, dezenas de corpos espalhados no chão ao som de alarmes e fugas de vapor causadas pelas explosões e consequente tiroteio. Era um cenário que JC já estava habituado. Era um cenário que JC adorava.

Com a maior calma do mundo entrou numa sala parcialmente destruída pelo caos dos minutos precedentes e olhou para o PDA que supostamente confirmaria as acusações do seu irmão. Para ele era apenas uma formalidade, tinha total confiança em Paul e sabia o que iria encontrar. Com a base despida dos seus anteriores habitantes, JC caminhou para o terminal onde iria mandar o aviso para a NSF em Paris. Há um dia atrás seria impensável equacionar sequer este cenário, estar a colaborar com uma organização que durante toda a sua vida viu como terrorista e inimiga. Mas hoje era a coisa mais natural do mundo.

A sua traição estava agora oficializada, ele estaria certamente na lista de futuros “dispensados” da UNATCO. O importante agora era fugir rapidamente com Paul para fora do país. O reencontro com foi curto, o seu apartamento já estava rodeado pela UNATCO. O som frenético de dezenas de agentes a subir as escadas era cada vez mais intenso. No meio dos gritos de Paul que implorava a JC para se salvar, ele  não teve duvidas sobre o que fazer. Paul fora a única pessoa com o qual sempre pode contar e não seria agora que o iria deixar para trás. Os irmãos Denton sabiam que este seria o momento mais importante das suas vidas e prepararam-se para o inevitável banho de sangue. A luta era intensa mas destinada ao fracasso, a oposição era interminável, um cenário saído directamente das lendas espartanas. JC sentiu um forte impacto na sua nuca, por mais que lutasse as suas forças começaram a falhar, sentiu-se impotente e caiu na escuridão. Ele estava agora à mercê dos seus captores mas o mais importante era a sobrevivência de Paul.

Quando finalmente sucumbiu, algo lhe dizia que tudo ia correr bem… de alguma forma.

Deus Ex: Um stealth RPG

A sua educação austera sempre o ensinou a respeitar a autoridade e os seus superiores, e a UNATCO era a sua casa, a família que há muito não tinha. A relação com o seu irmão era hoje em dia mais profissional que pessoal, mas respeitava-o. Foi assim naturalmente com choque que JC Denton ouviu do seu irmão Paul histórias de conspirações e traições em relação à UNATCO. Por muito respeito que ele tivesse a Paul, ele não poderia nunca tomar decisões sem ouvir o outro lado da história e sem ter certezas absolutas. As informações que conseguiu extrair do terrorista Lebedev foram curtas, Anna Navarre relembrava-o incessantemente das ordens que lhe tinham sido dadas, e essas ordens eram claras. Matar Lebedev.

JC sempre que saía em trabalho era assombrado por fortes conflitos internos, matar era para ele um poder que não lhe competia ter, apenas o fazia em casos extremos, casos como o de Lebedev. Ele devia muito à UNATCO e se a UNATCO lhe pedia para matar ele fazia-o, mas nunca de bom grado. Era o completo oposto de agentes como Anna Navarre e Gunther Hermann, insaciáveis por sangue e balas. JC era o mestre das sombras, o seu maior orgulho profissional era completar objectivos sem que as suas vitimas soubessem que algo erróneo tinha acontecido. Mas a sua devoção à UNATCO tinha limites, as palavras de Paul continuavam a soar-lhe ao ouvido. Quando recebeu uma mensagem de ajuda de Paul ele não hesitou. A sua próxima missão em Hong Kong poderia esperar, ele tinha tempo e qual seria o mal de visitar o seu irmão? É certo que era um foragido e um traidor mas JC apenas queria saber uma coisa, uma coisa que lhe atormentava há horas: Porquê?

A resposta morava num PDA guardado nas antigas instalações da NSF, agora sobre o controlo da UNATCO. Segundo Paul, nesse PDA residiam todas as provas que corroborariam as suas acusações. Paul pediu-lhe um ultimo favor, após comprovar toda a verdade transmitir um sinal de alerta à NSF em Paris. Uma coisa era ouvir do seu irmão as acusações, outra seria cometer um acto de traição. Mas JC conhecia bem as suas capacidades e não duvidava que conseguiria infiltrar nas instalações sem alertar a sua presença a ninguém.

O PDA encontrava-se na cave, guardado por intrincados sistemas de segurança, JC estudou a forma como as coisas estavam montadas, esta era a sua especialidade e entrou em acção. Seria essencial atingir o objectivo sem qualquer vitima mortal e sem despertar qualquer alarme. Só teria de colocar um dos guardas inconsciente, de resto não teria qualquer outra interacção humana. Como uma sombra na escuridão JC colocou um pobre agente inconsciente para poder ter acesso a um código, um código que daria inicio a uma corrente de acontecimentos que apenas terminariam junto ao seu objectivo. O código permitiu-lhe desactivar as câmeras de segurança que posteriormente lhe permitiu desbloquear uma porta de segurança que guardava uma sala, sala essa que alojava uma entrada de acesso às condutas de ventilação. No final dessa conduta estava uma nova sala com um terminal vulnerável às capacidade informáticas de JC. Daí até ao PDA foi uma questão de tempo.

A expectativa era enorme, por muita estima que ele tivesse ao irmão, no fundo ele desejava que tudo fosse um mal entendido e que talvez Paul tivesse sido enganado e no final de contas fosse ele a vitima no meio de tudo isto. Quem sabe se a UNATCO não o perdoaria e o aceitasse de volta. JC acedeu ao PDA, os seus desejos não se concretizaram.

Uma torrente de dúvidas e perguntas preenchiam o seu pensamento. O que deveria fazer? As provas eram claras mas JC ainda tinha duvidas, ou melhor, queria ter duvidas. Mas ele sabia que mais cedo ou mais tarde sem a sua ajuda, Paul iria ser capturado, se a única forma de o salvar era ajudando-o então é que iria fazer. JC activou as augmentations necessárias, velocidade, invisibilidade e corrida silenciosa, que na prática o tornavam invisível. Como uma flecha, subiu ao telhado das instalações, sempre pela sombra, sempre silencioso, sempre paciente para não cometer o menor erro.

Ele abriu o terminal, enviou a mensagem e tornou-se nesse preciso momento um traidor da UNATCO. O importante agora era fugir rapidamente com Paul para fora do país. O reencontro foi curto, o seu apartamento já estava rodeado pela UNATCO. O som frenético de dezenas de agentes a subir as escadas era cada vez mais intenso. No meio dos gritos de Paul que implorava a JC para se salvar, ele  não teve duvidas sobre o que fazer. Paul dificilmente sairia dali vivo, estava gravemente ferido e por muito que lhe custasse, ajudá-lo significaria também a sua morte, algo incompatível com o seu desejo de conhecer mais fundo toda a verdade. Era altura de pensar friamente e colocar as emoções de lado, os irmãos Denton trocaram olhares, ambos sabiam que nunca mais se iriam ver e JC fugiu pela janela. Talvez fosse um acto cobarde mas era a decisão mais acertada Enquanto descia para o sujo e sombrio beco, os sons abafados do tiroteio soavam-lhe nos ouvidos. Paul estaria certamente morto.

Ele tentou focar-se em si próprio e na sua auto-sobrevivência, era necessário colocar-se em segurança e planear os próximos passos. O metro de Nova Iorque estava longe de ser um local seguro, mas seria aí que Jock o iria buscar rumo a Hong Kong. Para sua surpresa e choque ele tinha “visitas”, nada mais nada menos que Gunther Hermann e Anna Navarre que o esperavam. Eles confirmaram os seus receios, Paul estava efectivamente morto e seria ele o próximo caso não acatasse as suas ordens. JC sabia que era fútil oferecer resistência e tomou a decisão que lhe parecia mais acertada… ou melhor, a única decisão possível, a rendição.

A liberdade de Deus Ex

Sim, estão a ler uma retrospectiva e não uma amostra dum romance falhado escrito por um novelista wannabe. Decidi arrancar o artigo desta forma para mostrar o grande ponto forte de Deus Ex e uma das razões porque passada mais de uma década ele continua tão presente na mente colectiva das pessoas, mesmo estando tecnicamente ultrapassado. Quem quiser ler sobre as partes técnicas e no que consiste o jogo, o melhor é irem ler analises feitas na altura e as várias retrospectivas feitas entretanto. Eu vou apenas falar no que para mim separa Deus Ex dum jogo banal, ou seja a sua liberdade, a liberdade narrativa e a de gameplay.

Os dois textos que escrevi no inicio do artigo podiam pertencer a dois jogos distintos, ou a duas visões opostas do mesmo jogo como se dois developers apresentassem as suas ideias pessoais para o mesmo jogo. Mas na verdade é exactamente o mesmo nível do mesmo jogo, jogado pela mesma pessoa. Embora a narrativa de Deus Ex seja linear e a liberdade do jogador esteja restrita às linhas centrais da história (o jogador tem de ir a Nova Iorque, tem de trair a UNATCO, tem de ser capturado e por aí fora) o sentido da narrativa muda de acordo com as escolhas e acções do jogador (o jogador pode escolher como agir com determinadas personagens e a narrativa adapta-se automaticamente a essas decisões, nunca apresentando um game over por causa das suas decisões). A titulo de exemplo, o jogador tem várias formas de interagir com Anna Navarre, pode assassina-la no 747, deixa-la viver, mata-la no metro em Battery Park ou mais tarde no capitulo seguinte ao que acabaram de ler. E mesmo a forma como o jogador a mata, volta a ter algumas variáveis. De acordo com a nossa decisão toda a narrativa adapta-se de forma praticamente invisível. E à semelhança da Anna, há uma enorme série de decisões semelhantes.

Ao contrario de muitos jogos que se pavoneiam de ter um sistema de escolhas e consequências mas que na verdade pouco mais são que uma versão moderna dos livros Fighting Fantasy, a narrativa de Deus Ex adapta-se a longo prazo por mais simples que as escolhas sejam. Em vez de meia dúzia de pontos críticos e centrais, em Deus Ex estamos constantemente a moldar a sua narrativa quase sem dar-mos conta disso. É uma situação que fora dos RPG’s tradicionais não era (nem é) muito habitual, é por isso que Deus Ex foi tão especial na sua altura e continua a ser louvado hoje em dia.

Para além da liberdade narrativa encontramos também a liberdade de gameplay (não consigo encontrar outro termo) ou seja as diferentes possibilidades que o jogo dá ao jogador para atingir os seus objectivos. O JC Denton do primeiro texto é radicalmente diferente ao do segundo. Claro que em termos de personalidade tomei muitas liberdades criativas, isso é algo construído na mente dos jogadores, não tivesse Deus Ex uma forte componente de role play, mas as suas acções e a forma de como o jogador escolhe enfrentar os obstáculos é um testamento à liberdade que o jogo nos dá. Deus Ex dá-nos uma série de diferentes caminhos e formas para atingir o mesmo objectivo, o que aliado às dezenas de diferentes augmentations e skills, elevam o numero de variáveis para valores assustadores.

Qualquer que seja a forma preferida do jogador enfrentar os obstáculos, o jogo não o limita, mesmo que algumas sejam bem menos práticas. A opção drástica e violenta do “primeiro JC” é bem menos eficaz que a do segundo (muito por causa de aspectos técnicos que não vou falar) e terá menos hipóteses de êxito mas é possível ser feita. Quem jogou Deus Ex sabe que o seu level design é fenomenal e é o aspecto que melhor aguentou o teste do tempo, aliás chega a ser quase uma relíquia do passado, dum passado glorioso que hoje em dia parece cada vez mais distante. Chega a ser assustadora a forma como hoje em dia a filosofia central de level design não segue estes parâmetros..

Cada nível é composto por uma área de consideráveis dimensões, algumas delas praticamente sem tempos de loading, preenchido por dezenas de caminhos, alguns deles interligados entre si que rumam todos ao mesmo objectivo final. Quer sejam portas, terminais, condutas, escadas, túneis, telhados, janelas, sistemas informáticos, etc … se estão lá podem ser usados, e podem ser usados de diferentes formas. Aceder a um computador através de hacking ou dum código encontrado previamente, entrar numa porta à força ou desencriptando a fechadura e por aí fora, qualquer decisão do jogador, como que por magia, resulta.

Vamos ser sinceros, se excluirmos esta liberdade e talvez a atmosfera cyberpunk do jogo, Deus Ex roça a mediocridade hoje em dia. Tecnicamente está completamente ultrapassado, a história é uma confusão centrada em conspirações governamentais e traições, o voice acting (excluindo Jay Anthony Franke) é terrível e amador, as mecânicas de combate deixam a desejar, a IA é inconsistente… resumindo é um jogo com 12 anos. Mas nos aspectos onde brilhava em 2000 continua-o a fazer hoje em dia e isso é impressionante e eleva-o ao estatuto de clássico. Continua a ser um jogo obrigatório para qualquer pessoa que se interesse por esta forma de entretenimento, foi um marco da sua geração e é uma recordação permanente da forma como a industria actual ainda está longe do que, ao virar do século, todos os que jogaram Deus Ex esperariam atingir.

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